Histórias de Trova - 25.07.2011

Histórias de trova
Olympio Coutinho

     O texto abaixo tem uma única pretensão: a de levar ao conhecimento dos interessados episódios envolvendo a trova em minha vida e parte do trabalho de trovadores pioneiros de sua maior divulgação no Brasil, a partir, principalmente, do final da década de 50 e início dos anos 60, do qual fui testemunha. Sou personagem, mas espero que a pretensão deste texto seja apreendida e compreendida, pois consciente sou de que Deus privou-me do sentimento de exagerada vaidade.

Capítulo I - Doce pássaro da juventude

     Comecei a fazer trovas muito cedo, inspirado em uma trova apresentada em sala de aula de Português e atribuída a Alexandre Dumas: “São as rosas que florescem,/são os espinhos que picam,/mas são as rosas que caem,/são os espinhos que ficam”. Era em Ubá, em 1958, e foi colocada no quadro negro pelo professor Francisco De Fillipo visando nos exercitar em análise sintática. A trova chamou minha atenção e resolvi tentar fazê-las. Não foi muito difícil: eu tinha 18 anos, andava apaixonado e estávamos na entrada dos que, mais tarde, seriam chamados “os anos dourados”: a ânsia pela liberdade e a gostosa sensação que ela proporciona estavam soltas no mundo – e também no Brasil. Comprei, sem qualquer referência, alguns livros de trovas, rabiscava algumas em um diário que mantinha (e que tenho até hoje - uma delícia para ler agora!) e elas foram saindo.

     Ubá, no início dos anos 60, os anos dourados, era uma cidade pequena, quase todos se conheciam e o que um e outro faziam todos ficavam rapidamente sabendo. Aconteceu comigo, que fiquei conhecido como poeta e trovador. Escrevia trovas nos jornais locais: Folha do Povo e Cidade de Ubá, e, uma vez, recebi um encargo de um amigo de então e amigo até hoje: Honório Joaquim Carneiro. Nascera sua filha Helena e ele pediu-me uma trova em sua homenagem. Fiz: Vi a alegria nascendo/em meio aos meus desencantos,/foi quando, filha, nasceste:/Helena dos meus encantos”. Em sua coluna na Folha do Povo, Honório publicou a trova com um exagerado título: “A Trova do Século”. De outra vez, ao ser cobrado por alguns conhecidos que pediam, ironicamente: “Ô, poeta, faz uma quadrinha aí!”, afastei-me, mas voltei logo e declamei: Deus me livre dos amigos,/eu peço aos Céus de mãos postas,/depois que vi que os “amigos”/falam de mim pelas costas”.

     A primeira namorada também ganhou trovas de amor, mas cito uma humorística nascida ao me olhar no espelho, antes de um encontro, e perceber-me “banguela”, devido à perda na piscina de um pivô, por sinal fruto de negligência minha: “Só porque perdi um dente/ela deixou-me na mão;/ficou o espaço vazio/na boca e no coração”. (Um parênteses: por volta de 1980, a calvície fazendo de minha cabeça um “aeroporto de piolhos”, a trova ganhou nova versão: “Só porque fiquei careca/ela deixou-me na mão;/sinto frio na cabeça/e também no coração.”

     Mas, de volta a 1960, o romance foi desfeito e a dor de cotovelo levou-me a fazer trovas assim: Hoje em dia pouco resta/do nosso amor, que passou;/tristes restos de uma festa,/depois que a festa acabou”. Depois, vieram as fofocas e as trovas mudaram de tom: “Afirmas que recebeste/o que nunca lhe escrevi;/gostaria de reler/esta carta que não li!”. Mas, as duas seguintes é que mais deram o que falar (lembrando que estávamos em 1960 e a cidade era mineira e do interior): “Não tenhas, Maria, medo/se o nosso amor teve fim,/o nosso grande segredo/eu guardo só para mim” e Eu tenho, Maria, medo,/que, em tuas horas vazias,/tu contes nosso segredo/às minhas outras Marias.”

     Mais tarde, outra Maria entrou em minha vida, ensejando trovas mais líricas: “Felicidade, Eleninha,/me deste a definição/ao pousar sua mãozinha/ternamente em minha mão”. Em 1961, já mais amadurecido em relação ao “fazer trovas”, dediquei-lhe outra, que dizia assim: “Eram alegres meus olhos/e tristes eram os teus;/por serem tristes teus olhos/ficaram tristes os meus”. Mais tarde, em 1965, esta trova foi enviada para concorrer aos I Jogos Florais da Comunidade Lusíada, promovido pelo Elos Clube, em São Paulo, e, entre as três vencedoras, era o única de um brasileiro – os outros dois vencedores eram portugueses.

Capítulo II – Meus Irmãos, os Trovadores

     Enquanto vivia os doces anos da adolescência em Ubá, sempre fazendo trovas, acompanhava de longe o movimento trovadoresco. As iniciativas de Luiz Otávio (Tirem-me tudo que tenho,/neguem-me todo o valor!/-Numa glória só me empenho:/a de humilde trovador...) e J. G. de Araújo Jorge (Neste dia belo e doce/de festa, - sentimental/- quem dera que você fosse/meu presente de Natal!) promovendo os primeiros “Jogos Florais”e, ainda, a edição de trovas de outros autores, como o “Cantigas de Muita Gente”. Zalkind Piatgorsky (Vou sorrindo com cuidado,/sondando bem a pessoa,/pois ser feliz é um pecado/que pouca gente perdoa!), que mantinha um programa de trovas na TV Continental, em parceria com Aparício Fernandes (Parti do Norte chorando,/que coisa triste, meu Deus,/eu vi o mar soluçando/e o coqueiral dando adeus”) lançava a coleção “Trovas e Trovadores” e o primeiro, em parceria com Magdalena Léa (Quando volto ao meu rincão/piso a terra comovida;/- Cada pedaço de chão/conta um pedaço de vida), a coleção “Trovas do Brasil”.

     Nesta época, jornais como ”O Globo” e “O Jornal” (dos Diários Associados) davam certo destaque às trovas. No “O Globo”, Antônio Olinto, conterrâneo de Ubá, mantinha coluna chamada “Porta de Livraria”, onde, além de outras notícias literárias, prestigiava diversos Jogos Florais, principalmente os de Nova Friburgo, publicando as trovas classificadas; além dele, Helena Ferraz publicava a coluna “Na Boca do Lobo”, onde sempre saía uma trova na seção “Quadra no Quadro”, e, no “O Jornal”, Elza Marzulo editava o suplemento literário “Jornal Feminino”, onde a trova aparecia sempre com destaque.

     Na Rádio Globo, Aparício Fernandes alimentava de trovas o Programa Luiz de Carvalho. Na Bahia, o trovador popular Rodolfo Coelho Cavalcanti, então presidente do Grêmio Brasileiro dos Trovadores, editava um jornal de trovas, “O Trovador”, e muitos outros trovadores, nos diversos recantos do País, também se encarregavam de divulgar o movimento trovadoresco. Nesta mesma época, surgiu a União Brasileira dos Trovadores (UBT), hoje com ramificações em praticamente todo o Território Nacional, em capitais e no interior dos Estados.

     Introduzo aqui um comentário do trovador João Costa (É nobre o gesto de quem/o sofrimento ameniza,/partilhando o que mal tem/com alguém que mais precisa”), delegado da UBT em Saquarema (RJ), que, em artigo publicado In Poesis, julho de 2004, tendo como fonte de pesquisa “Uma Análise do Trovismo”, do saudoso e grande estudioso da trova Eno Thedoro Wanke, escreveu: “A trova atravessou os séculos e chegou até nossos dias, tendo seu primeiro movimento, seu apogeu, nos anos 60 e 70, graças a Luiz Otávio e J. G. de Araújo Jorge. Antes, porém, havia chegado à capital cultural do país, o Rio de Janeiro, através do pernambucano Adelmar Tavares (Oh linda trova perfeita/que nos dá tanto prazer!.../Tão linda depois de feita,/tão difícil de fazer...) e quase estourou como movimento literário, mas o Modernismo esfriou os ânimos. A trova, inclusive, chegou a ser chamada de “boboca” por alguns modernistas mais empolgados. Mas, a verdade é que um trovador chegou à Academia Brasileira de Letras e a trova continuou tendo um lugar especial nos corações brasileiros”.

     Na busca para corresponder-me com os trovadores, descobri endereços de Luiz Otávio, JG, Aparício Fernandes, Eno Theodoro Wanke (Invejo a felicidade/de quem saudoso se diz:/- Quem hoje sente saudade/já foi, Um dia, feliz!), Walter Waeny (Não te prendas mais à dor,/nem lembres quem te esqueceu,/pois quem quer morrer de amor/vive do amor que morreu.), Álvaro Faria (Mais pobre do que não ter/nem mesmo pão em seu lar,/é ter muito a receber/e nada ter para dar) e muitos outros. Enviava trovas, pedia opinião e recebia respostas que deixavam o então jovem trovador cada vez mais entusiasmado.

     O JG enviou sua resposta através de um artigo publicado na seção “No Mundo da Poesia”, página literária de “O Jornal Feminino”, suplemento de “O Jornal”, do Rio de Janeiro, com o título “Um Trovador Mineiro”, que começava assim: “Minas é a grande ilha do arquipélago da poesia brasileira. Terra de poetas e trovadores. Desde a primeira Escola de Poesia, com Gonzaga, Alvarenga, Cláudio Manoel da Costa, até os modernistas autênticos, como esse grande Drummond, alto e de ferro, mas musicado de águas como uma montanha de Itabira. Começo com estes palavras para falar de um trovador que desponta: Olympio da Cruz Simões Coutinho, de Ubá... Quanto às trovas que me mandou, posso lhe dizer que são boas, que deve continuar a escrever, pois possui as qualidades inatas de um trovador...” E, citando uma de minhas trovas enviadas (Eu sempre que vou roubar/as galinhas dos vizinhos/fico com pena dos órfãos:/trago também os pintinhos), terminava assim: “Continue, meu caro Olympio, como trovador.... Mas, cuidado com a Polícia”.

     Esta trova rodou muito por aí e, ao longo do tempo, cheguei a vê-la como anônima em almanaques e, mais tarde, fiquei sabendo que um magnífico trovador, José Ouverney, de Pindamonhangaba, criador do site www.falandodetrova.com.br, quando mais moço, anotava trovas em um caderno e, entre elas, havia anotado a tal “trova dos pintinhos” sem saber de quem era. Ficou sabendo somente em 2008, quando passei a ter contato virtual com ele através do seu site e quando, aliás, voltei a participar dos concursos e dos Jogos, depois de mais quase 50 anos longe do movimento. Recentemente, quis incluí-la em uma antologia editada pela UBT BH, mas foi brecada... Daí, dei-lhe o formato atualmente exigido, mas não gostei: Eu sempre que vou roubar/as galinhas dos vizinhos,/para órfãos não deixar,/trago, também, os pintinhos. O A.A. de Assis a conhecia e sabia de quem era, pois fomos meio contemporâneos ali por volta de 1960/61/62.

     Em 1961, ganhei um prêmio em um concurso de trovas promovido pelo Rotary Clube de Vila Isabel, no Rio, cujo tema era “rosa”. A trova vencedora foi: “Enganou-se o passarinho, voando de flor em flor,/pensando que fossem rosas/os teus lábios, meu amor!”. Fui lá, levando meus pais, pois o orgulho era grande. Aproveitei a viagem para procurar trovadores com os quais mantinha correspondência. Estive também na redação do “O Jornal” para conhecer a Elza Marzullo e também o Symaco da Costa, que já me havia escrito. O Symaco era um tipo popular, bastante crítico em relação, principalmente, ao grande número de “trovadores” que surgiam devido à divulgação do movimento e que escreviam coisas assim: “Se eu me chamasse Maria,/que sorTE EU TEria, enfim,/tanta gente escreveria/muitas trovas para mim”. Mais tarde, em artigo publicado, afirmou: “Veja o enfim; foi enfiado ali a martelo”.  

     Na mesma oportunidade, procurei o Aparício Fernandes no banco onde ele trabalhava para conhecê-lo pessoalmente. Ele havia divulgado uma de minhas trovas no programa da Rádio Globo sobre o trovismo. O Aparício convidou-me então para ir a uma reunião em uma casa da Tijuca, onde os trovadores de então se encontravam nas tardes/noites das quintas-feiras, um happy hour trovadoresco. Fui lá: não me lembro de quem era a casa, mas me lembro, ainda que vagamente, da presença do Luiz Otávio, do JG, do Aparício e outros que a memória não guardou. O Luiz Otávio, o JG e o Aparício já conheciam algumas trovas minhas e já haviam escrito, incentivando-me. Entre as trovas, havia a seguinte, que havia sido elogiada: “Quisera ser qual o pássaro/que no laranjal faz ninhos;/constrói a felicidade/dentro de um monte de espinhos”.

     Da original que eu havia produzido, houvera duas correções, a primeira feita pelo Symaco da Costa, quando o visitei na redação do O Jornal: qual no lugar de como no primeiro verso; a segunda, feita naquela reunião: que no laranjal faz ninhos... originalmente era “que nos laranjais faz ninhos”. Mas a briga boa foi da turma tentando colocar rima dupla na bichinha... tentaram, tentaram e acabaram dizendo mais ou menos o seguinte: "Deixa como está; é boa assim mesmo!"

     Ainda em 1961, resolvi fazer uma primeira edição de um livro de trovas, ao qual dei o nome de “Festival de Trovas”. Tinha capa amarela e 101 trovas. Tratei de enviar exemplares para todos os trovadores com os quais mantinha correspondência e recebi elogios e conselhos que muito me valeram de JG de Araújo Jorge, Symaco da Costa, Augusto Astério de Campos, José Dias de Moraes, Walter Waeny, Luiz Otávio, Isaías Ramirez, Walter Gomes da Silva, José Alencar Gomes da Silva e Honório Joaquim Carneiro (então presidente e secretário da Associação Comercial de Ubá, respectivamente), Fernando Burlamarqui, A. Isaías Ramirez, Synésio Fagundes, Eno Theodoro Wanke, Nordestino Filho, Dídimo Paiva, Rodolfo Coelho Cavalcanti, Camilo Lélis da Silva, Evandro Moreira, Pereira de Assunção, Renato Pacheco e Aparício Fernandes.

     Uma carta que também me deixou entusiasmado foi a recebida do Rodolfo Coelho Cavalcanti, de Jequié, Bahia, da qual, imodestamente, transcrevo um trecho: “O seu livro Festival de Trovas fez-me dizer sinceramente: o Brasil tem mais um trovador!... Tanto no lirismo como no humorismo, o amigo é um bom trovador. Sorri bastante com o seu grande humor na questão dos “pintinhos”... Fazia tempo que eu não sorria com uma boa trova e não queira saber a gostosa gargalhada que eu dei. Disponha sempre do trovador popular a amigo...”

     Em 1962, mudei-me para Belo Horizonte, onde trabalhei em banco, fiz cursinho, passei no vestibular e iniciei o curso de Jornalismo. Ainda escrevia diário e fazia trovas. Tão logo instalei-me em Belo Horizonte, cuidei de conhecer os trovadores locais: procurei o Edson Moreira, um dos três irmãos donos da tradicional Livraria Itatiaia, e ele indicou-me o José Valeriano Rodrigues, então presidente da Academia Mineira de Trovas, fundada em 3 de agosto de 1961. Por sinal, mais tarde, o Valeriano seria um dos vencedores dos Jogos Florais de Friburgo, com esta trova: Não anda, só se equilibra;/não fala, só balbucia;/é neste esforço que vibra/a mais humana alegria”. Fui à sua casa, no bairro Santo Antônio, e, instruído por ele, candidatei-me a uma das vagas: como determinava o regulamento, enviei 50 trovas. Fui aprovado e no dia 28 de novembro de 1962, tomei posse, orgulhosamente na cadeira 11, cujo patrono é o poeta Cassimiro de Abreu.

     Vale registrar que eu tinha 22 anos, o que despertou curiosidade na sala, pois os demais membros da Academia eram trovadores com mais de 40 anos – o que me faz pensar na necessidade de disseminarmos mais a trova entre as crianças e os jovens. Hoje, eu que era o mais novo em 1962, sou um dos mais antigos, se não for o mais antigo membro da Casa. Foi quando conheci mais trovadores locais, entre eles o grande Paulo Emílio Pinto, premiado em um dos Jogos Florais de Nova Friburgo (tema “Vida”), com esta pérola: Esta engrenagem que é a vida/esmaga a todos sem dó,/e a gente aos poucos, moída/de novo volta a ser pó”.

     Ainda em 1962, fui a Nova Friburgo como assistente, pois não conseguira classificação para os III Jogos Florais (tema “Ciúme”). Tinha um irmão, Olymar Affonso, de saudosa memória, que trabalhava lá e morava em uma pensão. Creio que, na época, a maioria dos trovadores ficava no Hotel Sans Souci. Lembro-me, se não me engano, do Durval Mendonça, do José Maria Machado de Araújo, do Anis Murad, do Orlando Brito e, obviamente, do Luiz Otávio e do JG. Lamentavelmente, nada registrei em fotos e do que a memória “fotografou” pouco se reteve.

     Em 1966, sempre entusiasmado com o movimento, editei uma segunda edição do “Festival de Trovas”, com capa azul, com muitas das 101 trovas da primeira edição e outras novas. Na abertura, como prefácio, o artigo escrito pelo JG em 1961 sobre minhas trovas e, no final do livro, trechos de outros artigos publicados e cartas recebidas falando da primeira edição do livro. E parei por aí: envolvido com a minha nova vida de repórter de jornal e com as aventuras do exercício da profissão, então romântica, deixei de frequentar a Academia e não procurei a seção mineira da UBT para inscrever-me. Acreditei também que o movimento trovadoresco havia arrefecido e deixei de fazer trovas regularmente. Só em 2008, ao tomar conhecimento de que o movimento estava mais vivo que nunca, principalmente depois de conhecer o "falandodetrova", voltei a participar dos concursos, tornei-me associado da UBT e, desde então, ando beliscando umas premiações, mas tenho viajado pouco para voltar a conviver com “meus irmãos, os trovadores” e reviver, com outros, aqueles bons tempos de confraternização e congraçamento.
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OLYMPIO COUTINHO é jornalista residente em Belo Horizonte, e premiadíssimo em concursos.