01 - CEM TROVAS DE BELMIRO BRAGA

Coleção “Trovadores Brasileiros”
Organização de Luiz Otávio e J.G. de Araujo Jorge
Imagem removida.
Belmiro Braga
(1872 - 1937)

Prefácio de J.G. de Araujo Jorge
Rio de Janeiro, Abril, 1959

Belmiro Ferreira Braga, nasceu a 7 de janeiro de 1872, na Fazenda da Reserva, em Vargem
Grande, depois Ibitiguaia (hoje, Belmiro Braga). Morreu no dia 31 de março de 1937, às 6 horas da tarde.

     Estranha essa velha e sempre novíssima Minas Gerais. Dá Belmiro Braga e Carlos Drumonnd de Andrade. Montanhas de ferro, vermelhas, enferrujando-se no ar, pastagens e campos verdes, de águas claras e brancos leites. Escrevi certa vez: “Inglaterra do Brasil” ao mesmo tempo liberal e conservadora, desconfiada e expansiva, na alta clausura de suas montanhas, fabrica de tudo: místicos, satíricos, ironistas, tímidos, aventureiros,. Fechada em seus limites, se abre para o alto, voltando-se para o céu, - a sua imensa janela; para baixo olhando de cima e de longe; como de camarote. De extremos: revolucionária e tradicional. Na política, na poesia, na arquitetura, em tudo. Tiradentes e Bernardo de Vasconcelos, Ouro Preto e Pampulha Belmiro e Carlos Drumonnd. Nela os extremos se tocam, se combinam. Vai vivendo assim com a sua dupla face, sua alma bifronte.
     A terra de poetas, de grandes poetas: é a “grande ilha da poesia” brasileira. Não sobrevive só: faz parte de um arquipélago. Mas é a ilha principal: ontem, hoje. Ilha montanhosa, de altos cumes.

* * *

     Aqui vamos falar de um de seus filhos., de um de seus poetas: Belmiro Braga. aparentemente, pouco mineiro.: expansivo, jovial, exuberante, transbordando-se em versos pela vida. Voltado para
fora; ao contrário da maioria: de costas para o mar. Belmiro era um temperamento simples, sem complicações. Por isso sua poesia escorreu das montanhas como um curso de d’água transparente,
córrego alegre, tirando música de cada obstáculo, de cada acontecimento.
     Nasceu o poeta na Fazenda da Reserva, antigo Distrito de Vargem Grande (hoje Município com o seu nome), perto de Juiz de Fora, a 7 de Janeiro de 1872, e morreu em Juiz de Fora, a 31 de Março de 1937.
     Herdou possivelmente a veia poética de seu avô materno, Francisco Lourenço de Barros, “versejador mordaz” no dizer de Alves Cerqueira ( O “Rouxinol Mineiro”, artigo no “Jornal do Comércio” do Rio de Janeiro, em 27/3/1932). Filho de José Ferreira Braga, comerciante português, e de Francisca de Paula Braga, brasileira, Belmiro estudou as primeiras letras no “Ateneu Mineiro”, em Juiz de Fora, de onde voltou a Vargem Grande com a morte da mãe, ajudando o pai nos negócios. Esteve depois em Muriaé, em Carangola, e em 1901 era comerciante na Estação de Cotegipe, onde o foi encontrar o poeta nortista Antônio Sales, que passava tempos numa fazenda
próxima. Foi Antônio Sales quem o apresentou depois, em um artigo na imprensa carioca, como o “João de Deus Mineiro” Na mesma ocasião conheceu Belmiro Braga a Fernandes Figueira, médico, que colaborava em revistas da capital do país, com o pseudônimo de Alcides Flávio. Tornando-se seu companheiro de tertúlias literárias, Fernandes Figueira o orientou de certa forma em sua formação intelectual e conseguiu que os primeiros versos de Belmiro fossem publicados no Rio.
     Com a divulgação de seus trabalhos Belmiro Braga granjeou em pouco tempo popularidade. E de seu conhecimento em Minas com Antonio Figueirinhas, editor português que andava em viagem pelo Brasil, surgiu o lançamento do seu primeiro livro. “Montesinas” saiu prefaciado por Batista Martins, um amigo de Carangola, quando era comerciante, e Martins, estudante de Direito e jornalista. Lançado o livro em 1902, Belmiro publicou depois: “Cantos e Contos”, em 1906; “Rosas”, em 1911; “Contas do Meu Rosário”, em 1918; “Tarde Florida”, em 1925; e finalmente, “Redondilhas”, em 1934.  Escreveu também para o Teatro.

* * *

     Hoje há em Minas dezenas e dezenas de academias e grêmios literários com o nome do poeta. E Juiz de Fora, muito particularmente, reverencia e cultua a memória de Belmiro Braga que dedicou à "sua cidade", e ao lar paterno,um amor extremoso. António Sales, seu grande amigo, no livro "Retratos e Lembranças" traça, num dos capítulos, um perfil completo do poeta, seu
temperamento, caráter e formação. Diz ele: "O lar paterno era uma obsessão sentimental de Belmiro. O sitio Reserva, onde nasceu e passou a primeira fase da infância, depois tão dolorosa,
tão brutalizada pelos maus tratos da vida, esse sitio era a Meca para onde seu espírito se voltava num culto perene". Um de seus mais tocantes poemas, redigido em forma impessoal, foi este
que ele escreveu, depois de uma visita à casa paterna:

"Foi aqui, neste plácido retiro
ouvindo a voz amiga dos teus pais,
que a infância alegre te correu, Belmiro,
a alegre infância que não volta mais. . ."

     Num outro poema, dirigindo-se a amigos, exalta a alegria de rever o torrão natal:

“Meus amigos da cidade,
morrei de inveja! eis-me aqui
na ridente soledade
onde nasci.”

     Belmiro era funda mentalmente um homem simples, um homem bom. Tinha direito de se reconhecer como tal no prólogo que escreveu para o livro “Contas do Meu Rosário”:

“Sendo minha alma simples compreendida
por outras almas simples, que prazer!
Tudo que a gente faz melhor na vida
é aquilo que se faz sem aprender.”

     E, modesto:

“Que este livro não é uma obra de arte,
mostram suas estrofes sem lavor:
- do triste coração meu verso parte
como o aroma do cálice da flor.”

     Enganava-se entretanto. Seu livro era uma beleza. Uma verdadeira obra de arte. Sem artificialismos estéticos, fazendo sua poesia como andava, como respirava, ele dava-se todo, de alma e coração, às palavras em que se traduzia. E por isso, as palavras ganhavam essa música simples de cantigas, traduzindo em versos e rimas sentimentos e pensamentos de toda gente.
Ele tinha razão, a poesia estava nele, como o perfume na flor, como o pássaro no céu, como a água na terra.
     De Belmiro poderia dizer que ele quase falava em versos. E se não falava, escrevia. Eis o testemunho de seu amigo Alves Cerqueira: “Comerciante em Cotagipe, Belmiro costumava dirigir-se aos fregueses em versos”, porque sentia mais facilidade nesta forma do que em prosa. Os amigos de Juiz de Fora, de tanto vê-lo versejar com a facilidade que lhe era característica, acabaram por lhe solicitar versos em todas as oportunidades. O caso de Irineu Rocha é por demais conhecido. O Chefe de Oficinas do “Jornal do Comércio” de Juiz de Fora, Irineu lhe pedira
quadrinhas a propósito de qualquer acontecimento, do mais alegre ao mais triste, de um batizado a um falecimento. Um dia, passando pelo jornal, Belmiro soube da morte de Irineu. E como se atendesse a uma solicitação póstuma, homenageou o velho gráfico com estas três quadrinhas:

“Se um seu amigo morria,
ele vinha ter comigo
e umas quadras me pedia
para a morte desse amigo.

Hoje, lembrando esse fato,
eu pensei, em mágoa imerso,
que talvez lhe seja grato
ser chorado também em verso.

E assim nestas quatro linhas
venho aqui dizer-lhe triste:
- Irineu, toma as quadrinhas
que nunca tu me pediste.”

* * *

     Trovador, no velho e no novo sentido da palavra, estava em permanente dueto lírico com a vida. Tudo lhe era assunto para a quadra, um soneto, uma redondilha. A gente vai lendo e se admirando de que as palavras casem tão bem no fim dos versos, como se tudo já estivesse feito, e o poeta fosse apenas o “instrumento” que as cantava e divulgava. Foi um grande, um extraordinário versejador.

* * *
      Com a subversão dos modernos conceitos da poesia, como definir esta poesia discursiva, descritiva, profundamente extrovertida, sem mistérios, limpa e transparente, de Belmiro Braga?
E quando falo em Belmiro, me refiro a um sem número de outros grandes poetas que continuam versejando, com tônicas bem postas, métrica e rima, todos os chamados artifícios formais da poesia tradicional.
     Que há beleza, emoção, comunicabilidade no que escrevem, não há dúvida. Que realizam autênticas obras de arte, só sectários podem negar. E então teremos que rebatizar o gênero literário de que se servem, já que as correntes modernas se apoderaram da palavra. – poesia – e erigiram novos tabus de conceituação.
     Para os estetas das novas correntes, os cristais teriam de subverter as leis da cristalografia se quisessem permanecer como símbolos de beleza, nos tempos atuais.

* * *

     Belmiro é um autor que está, de corpo inteiro, em sua obra. Lírico e satírico, mas de uma sátira jocosa, sem maldade, era fundamentalmente um grande emotivo, um sentimental incorrigível.
     Amigo dos amigos, tomando a própria família como tema permanente de seus versos, ele viveu em versos. era uma espécie de “ópera” viva, ambulante! Sua vida, sua infância, a vida dos seus, seus negócios, suas pretensões políticas, tudo para ele era verso, era poesia.
     Até seu próprio testamento antecipadamente redigiu, numa auto-sátira bem humorada. Nomeado tabelião em Juiz de Fora, em 1903, aproveitou-se logo da sugestão do cargo:

Morto não quero o belengar de sinos
enchendo de tristeza o espaço imenso,
nem esses tristes, merencórios hinos
de charanga do bairro a que pertenço.

Cante-me o padre alguns textos latinos
por entre nuvens de cheiroso incenso,
mas desde já previno-o: pequeninos,
que os longos textos com prazer dispenso.

No cemitério, nada de discursos!
Acautelem-me ali dessa estopada
os bons amigos dos amigos ursos,

pois, em casa, o orador, à sobremesa,
dirá pensando em mim: Não somos nada!
Lá se foi o Belmiro... Que limpeza!

     É muito citado o soneto que dirigiu como carta, ao pai da moça, quando
seu filho queria se casar:

Artur Fernandes de Oliveira – abraços.
Tens, amigo, uma filha e eu tenho um filho
que desejam da vida o mesmo trilho
palmilhar, a sorrir, contando os passos.

Se o amor os tem prendido nos seus laços,
se entre os dois não existe empecilho,
tu te envaideces, eu me maravilho,
por vê-los um ao outro abrindo os braços.

Se dela o coração é manso e puro,
tem ele garantido hoje o futuro
servindo à Pátria com amor e fé.

Mas vamos nestas linhas por um ponto;
o que quero de ti, aqui te conto:
- é de Cordélia a mão para o José.

     E não satisfeito, na véspera do casamento, mandou ao filho a sua bênção
e as congratulações pelo acontecimento:

"Meus parabéns, José, porque suponho
que a vida que a Cordélia te assegura
há de ser de carinho e de ventura
sob a tranqüila paz de um céu risonho.

Dos teus sonhos de moço o melhor sonho
foi, meu filho, essa jovem de alma pura
em cujos dons de afeto e de ternura
todas as minhas esperanças ponho.

Abençoado seja, pois, o laço
que prende para sempre num abraço
os vossos corações de ouro de lei.

Em nossa vida a mesma estrela brilha,
que a mulher que amanhã me dás por filha
é igual àquela que por mãe te dei..."

     Depois foram os netos. Abrindo o volume "Tarde Florida" está o poemeto
"Versos do Coração que começa assim:

"Cláudio e Jorge... A minha vida
de amor, carinhos, afetos,
tenho-a toda resumida
nestes dois netos!"

     Candidato a deputado estadual, contando com o apoio político de seu amigo, o Coronel Martins Ferreira, de Leopoldina, este lhe escreveu, querendo mexer com Belmiro, que só ia lhe dar a metade da votação, porque a resposta à sua carta lhe chegara em prosa. Belmiro não se fez de rogado.
     E conquistou a votação inteira com este soneto:

"Meu caro Coronel Martins Ferreira,
candidato extra-chapa a deputado
ao congresso da Câmara Mineira,
desejo ser aí o mais votado.

A minha fé de oficio é de primeira,
vale por um programa o meu passado,
e no congresso não direi asneira
todas as vezes... que ficar calado...

Fui caixeiro, depois fui negociante,
e do torrão natal representante
agora aspiro ser como escrivão:

e eleito, espero, mas que maravilha!
- ser pai da Pátria e receber da filha
todo o subsidio, quer trabalhe ou não!

     Um outro amigo seu, Abílio Barreto, reclamou de certa feita contra o silêncio do poeta. Já escrevera três cartas e nada de resposta. Belmiro, apanhado em esquecimento, apressou-se em penitenciar-se. E compõe às pressas uma resposta ao amigo Abílio, na própria Agência do Correio:

"Prezado Abílio, perdoa
a resposta demorada:
tu sabes, quem vive à toa
não tem tempo para nada."

     Filósofo do povo, ele, com graça e inteligência, ia fixando a alma de sua
gente. Estava nele, - ele próprio não sabia que encarnava e simbolizava,
em sua poesia, ao fixar a vida, - a alma do nosso homem do interior,

* * *

     As duas faces da poesia de Belmiro foram sempre estas. Um profundo amor pelos amigos, pelos parentes, aos quais dedicava um sentimento de grande ternura; e o tom chistoso, alegre, com que brindava àqueles a quem não podia dedicar apenas carinho. No fundo, um humor sadio, às vezes irreverente, mas nunca agressivo ou ferino. Era terna e alegre a sua Musa. E acima de tudo, humana.
     De certa feita um jornalzinho da terra, chamado "Justiça" pediu-lhe uns versos para um número de aniversário. 0 trabalho foi feito, pequena obra prima, mas não foi publicado. Leiam-no e compreenderão:

"Quanto é bela a Justiça? Aplaina escolhos
e os interesses vela
do grande e do pequeno... E ela, depois,
fechando os olhos
e abrindo a goela,
engole os dois...

Reta, ao dirimir uma contenda
ajusta as artes, e, num gesto nobre,
em vez de pôr a venda, põe à venda
os bens do pobre..."

     Este espírito crítico de Belmiro, que nascia da bondade de seu coração, se
manifestou até em relação aos próprios problemas estéticos. Belmiro, sem
mais delongas, não aceitava o modernismo na poesia. Intimamente havia de
achar que estes poetas modernos faziam complexa uma coisa que nele nascia
sem nenhuma dificuldade. Mas se o negócio era esse, ele também era capaz de
fazer "modernismo". No prefácio de seu livro "Redondilhas", chamando aos
futuristas de "um aluvião de turcos que invadiram a praça obrigando-o a
cerrar as portas e a recolher, como alcaides e refugos, os seus pobres
sonetos, quadras e sextilhas", ele, incoerentemente, publica seu livro,
e ainda perpetra poemas desalinhavados, para provar que pode fazer versos iguais.
     Floriano de Lemos, em belo artigo que lhe dedicou no "Correio da Manhã",
do dia 18 de abril de 1954, cita este outro fato; e comenta:  "A obra de Belmiro Braga é um monumento de naturalidade, graça e delicadeza. Não há em toda ela um verso forçado ou uma idéia nascida sem inspiração."
     Sabendo fazer poesias rigorosamente parnasianas, não desculpava, entretanto,
a mania das rimas difíceis que certos autores tinham. O estilo afetado foi
por ele duramente criticado em uma série de quadrinhas que começa por estas duas:

"Recebi de um jovem bardo
uns versos nefelibatas
de quatro pés, que não tardo
chamá-los... de quatro patas!

Ao lê-los a gente fica
pensando, e afinal descobre
que é sempre uma rima rica
que veste uma idéia pobre."

     Realmente, da poesia de Belmiro Braga se pode dizer que, se há rimas
e versos pobres, estes são ricos de emoção, de ternura, de beleza.

* * *

     Em gênero nenhum Belmiro parece tão à vontade como na trova.
Poeta popular por excelência, espontâneo, ele usava a trova
com uma facilidade espantosa. E assim como os críticos têm
lembrado que Bilac já trazia um perfeito verso alexandrino no
nome (Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac), Belmiro Braga trazia uma
redondilha menor, um verso de 7 sílabas:  Belmiro (Ferreira) Braga.

     Dele, eu poderia dizer:

"Fez trovas como quem ri
chora, canta, ou roga praga.
Troveiro igual nunca vi:
- Belmiro Ferreira Braga."

Foi ela ti seu Universo
cantou-a, sem querer paga,
e ao nascer, trazia um verso:
- Belmiro Ferreira Braga.

     Trovador, troveiro ou trovista nato, a trova era uma medida ideal para
a sua inspiração, quer desabafando mágoas e alegrias, quer "desopilando"
suas inofensivas maldades satíricas. Humorista de fina sensibilidade, servia-se
dos versos para fixar coisas, pessoas e fatos, em rápidas caricaturas poéticas.

     Neste volume que apresentamos iniciando a "Coleção Trovadores Brasileiros",
Belmiro Braga aparece com 100 trovas, líricas e humorísticas. Numa e noutra
realizações, foi perfeito. Vamos citar um exemplo de cada face de seu trabalho.
     De certa feita, Belmiro Braga satirizou um advogado juiz-de-forano, que falava,
como diz o povo, "pelas tripas do judas", mas cacete que nem ele só:

"Um certo orador maçante,
das margens do Paraibuna
ao falar, de instante a instante
vai esmurrando a tribuna.

E quem o conhece, sente
por mais ingênuo ou simplório,
que os murros são simplesmente
para acordar o auditório."

     E agora, o Belmiro sentimental, lírico, autor de verdadeiras obras-primas,
cujo coração era uma misteriosa e insondável concha univalva a fabricar e
expelir pérolas e mais pérolas.
     Aqui está uma destas "pérolas", dedicada justamente àquela que o deixou
órfão, tão cedo:

"Acima de tudo, acima
do céu te devemos pôr,
pois teu nome não tem rima
nem limite o teu amor."

     Mas suas trovas não são apenas sentimento. Eram também pensamento.
Despreocupadamente, - com beleza e sinceridade - Belmiro aconselha
a dois noivos, no dia das bodas:

"A noticia bato palmas
e mando um conselho aos dois:
- primeiro, casem as almas,
casem os corpos depois."

"Que eu tenho os olhos cansados
de ver (umas mil talvez),
dentro de corpos casados,
almas em plena viuvez."

     A verdade em relação a Belmiro Braga é uma só. Um poeta, com tal
força de expressão e com tão profundo sentimento de humanidade,
não precisa de escolas. É um Poeta. Sobreviverá a qualquer tempo. Será sempre ouvido.
     E isto basta. Está cumprida a sua missão.

J.G. de Araujo Jorge
Imagem removida.

in
 Coleção “Trovadores Brasileiros”
Organização de Luiz Otávio e
J.G. de Araujo Jorge
Editora Vecchi – 1959

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Coleção “Trovadores Brasileiros”
Organização de Luiz Otávio e
   J.G. de Araujo Jorge
 

Imagem removida.
Belmiro Braga
(1872-1937)
          

* * *
                    n.01                                                      n.02                                        
As almas de muita gente                     Em ti, minha mãe, se encerra
são como o rio profundo:                     todo o meu maior troféu:       
-a face tão transparente,                  - guardas num corpo de terra
e quanto lodo no fundo!...                     uma alma feita de céu.             

                  n.03                                                     n.04                                       
Fiz na vida o meu escudo                  Quem, mesmo nas alegrias,   
      desta verdade sagrada:                  de lastimar não se furta             
- o nada com Deus é tudo                   de ver tão longos os dias,             
e tudo sem Deus é nada.                    para uma vida tão curta?...     

                      n.05                                                       n.06                                             
Quem, mesmo nas alegrias,             Pobre de mim! Por desgraça      
     de lastimar não se furta              meu coração é um coador:          
de ver tão longos os dias,                 nele, o riso escorre e passa    
para uma vida tão curta?..               e fica tudo o que é dor.                        

  n.07                                                        n.08                         
A beleza não te atrai?                  Saudade... palavra linda,        
    Só te casas por dinheiro?                 de sete letras... Saudade                    
Tu pensas como teu pai,                  é noite que tem ainda                 
  que morreu velho e... solteiro.                  lampejos de claridade.                           

  n.09                                                        n.10                           
Casa em março Ester Macedo             Só mesmo Nossa Senhora             
e em julho é mãe... Ora, o alarde!             pode dar paz e conforto                      
O filho não veio cedo,                       à desgraçada que chora                 
o esposo é que veio tarde...              a ausência de um filho morto.    

n.11                                                         n.12                        
Muitas vezes imagino,                    Eu não lamento o revés           
 os meus dias desolados,                   do morto que se fez pó;                             
que o meu coração é um sino            do vivo, que espera a vez                                 
   dobrando sempre a finados.                desse sim, eu tenho dó.                        
   
              n.13                                                         n.14                      
         Quantos mortos trago vivos                 Olhaste Jesus na Igreja                          
        no fundo do coração,                 demais. E tanto o tens visto...                    
 e dentro em mim quantos vivos                Fazes-me assim ter inveja                    
      há muito mortos estão!...                da própria imagem de Cristo.                  

n.15                                                         n.16                      
Eu morro por Filomena,                     A vida, pelo que vejo,              
Filomena por Joaquim,                     hoje é  vale e amanhã cimo:    
o Joaquim por Madalena                     -A quantos pobres invejo             
e Madalena por mim.                     e a quantos ricos lastimo!       

n.17                                                        n.18                     
Vivo, encheu ( a História o prova)             Teu coração é morada                         
com suas glórias o mundo,                que não atrai, felizmente:        
e, morto, não enche a cova                      -Quem nele arranja pousada            
de quatro palmos de fundo.                      encontra a cama ainda quente.          

n.19                                                       n.20                     
Meu coração é uma ermida                   Uma princesa parece                       
toda enfeitada de flores,                   pelos trajos do alto preço,          
onde conservo escondida                   mas quanta gente conhece         
Nossa Senhora das Dores.                  seus vestido pelo avesso!...          

n.21                                                       n.22                     
 Os beijos, segundo os sábios,             Num tronco seco, sem vida                            
         dados com muita afeição,                  minha mão teu nome abriu                      
      não deixam sinal nos lábios,                  e o tronco seco, em seguida,                   
mas deixam no coração.                  reverdeceu e floriu.                    

n.23                                                       n.24                     
  Desilusões, desenganos,                 Politiqueiros... Que súcia!                 
tudo a velhice nos traz,                Segundo as leis de Lavater,        
mas existe, além dos anos,                o que lhes sobra em astúcia,            
     a eterna bênção da paz...                  é o que lhes falta em caráter.              

n.25                                                       n.26                     
  Dizem que a lágrima nasce             Vi teus braços... que ventura!         
        do fundo do coração...              teu colo... as pernas... que gosto! 
         Ah! se a lágrima falasse,              Agora, tira a pintura,                        
               que doce consolação!               Que eu quero ver o teu rosto.             

n.27                                                      n.28                     
Quis a sorte que te visse,               Por ver-me alegre e contente,
quis o amor que eu te adorasse,              julga-me o mundo feliz:                    
    quis o dever que eu partisse,              nem sempre o coração sente            
quis a paixão que eu ficasse.               aquilo que a boca diz..                    

n.29                                                       n.30                     
Mulheres que eu vi no banho,               Na justiça tem confiança               
    vejo-as depois no salão!                e verás. depois, surpreso           
   -Se pelo rosto as estranho,               que, por ter venda e balança,        
   pelas pernas sei quem são.              ela te rouba no peso.                      

n.31                                                       n.32                     
Muitos supõe a ventura                A mulher para ver Vênus    
ver em meus olhos brilhar,               deve ter cintura fina,               
quando esse brilho é tortura              olhos grandes, pés pequenos    
           de não poder mais chorar.               e língua bem pequenina.            

n.33                                                       n.34                     
  Que grande, triste verdade               Quanta vez junto a um jazigo
 me sussurra o coração:               alguém murmura de leve:
   - a dor é uma realidade,              - Adeus para sempre, amigo!
         a alegria - uma ilusão...              E diz-lhe o morto: - Até breve!

n.35                                                       n.36                     
   Natal! E eu sinto em minha alma                Natal. No céu e na terra                     
   cantando uma ave... Natal!                  quanta alegria! Natal !              
   No dia azul - quanta calma!                  A paz adoçando a guerra,             
   Parece a noite um rosal!                 o bem adoçando o mal .         

n.37                                                      n.38                   
 Tu não vês que vivo louco               Muito mais desenxabido        
          por causa desta afeição ?                que a goiabada sem queijo,                 
   Coração, sossega um pouco,              é te abraçar, bem querido,                            
coração sem coração !                  e não poder dar-te um beijo.

n.39      (Mãe)                                                     n.40                    
Acima de tudo, acima                Coração, bate de leve;                 
     do céu, te devemos por:                deixa os teus sonhos horríveis,
o teu nome não tem rima,               que um coração nunca deve    
     nem limite o teu amor.              sonhar coisas impossíveis.        

n.41                                                       n.42                    
            Com juiz, reto e calmo               O que perdemos na vida,                     
posso afirmar sem receio:                procuramos sem achar,                
- Mulher de boca de palmo              exceto a mulher perdida,               
tem língua de palmo e meio              que achamos sem procurar...            

n.43                                                       n.44                    
Amigos... E quanta gente                 Teus olhos, Rosália amada,             
não crê na verdade atroz                 me recordam dois ladrões,             
que, no mundo, há tão somente:                sob a pálpebra rosada                         
 - Aquela que existe em nós.               tocaiando corações...                        

n.45                                                       n.46                    
Olhos pretos, dois acesos                 Prezado amigo, perdoa                 
e recendentes carvões:                   a resposta demorada:               
- Par de algemas que traz presos              tu sabes, quem vive à toa,                        
         corações e corações.                       não tem tempo para nada.                 

n.47                                                       n.48                    
Não conhecem mesmo os sábios               A mulher, além de terna,                            
este caso singular :                    faz tudo com perfeição,            
      - Fala a mente pelos lábios                que até nos passando a perna,                   
e o coração pelo olhar.                  tem a nossa gratidão...                  

n.49                                                       n.50                    
  No anel que me deste, pego              Nossa Senhora Sant'Ana,
           e vejo que é falso, crê.              permita que possa um dia
- Se o amor verdadeiro é cego,              mobiliar minha choupana   
também falso é o amor que vê...               com as "cadeiras de Maria!"   

n.51                                                       n.52                     
        Na vida, maior ventura              De Júlia o pesar profundo
          nada nos pode causar              parece uma coisa pouca;   
         do que a tépida ternura              - vive na boca do mundo      
que nos vem de um doce olhar.              por ser beijada na boca.          

n.53                                                       n.54                     
       Aquele que dá esmola               Deus do amor, Deus da esperança,
         tem duas vezes a palma:              conduz por flóreo trilho                      
- Primeiro, o pobre consola,              os passos dessa criança                     
depois, consola a sua alma.              - lindo filho do meu filho!                 

n.55                                                       n.56                     
Ha dois poderes no mundo              Sobre o triste chão de abrolhos
que tudo movem. Primeiro:             em que tu vieste ficar,                
- Mulher bonita. Segundo:              meus tristes, cansados olhos,    
dinheiro, muito dinheiro.              não se cansam de chorar.
       
n.57                                                       n.58                     
Dos beijos me lembro, Glória,              Na terra que te consome,
    mas não do sabor, meu bem.              nem uma triste inscrição!
Por que a fronte tem memória              Pudera! Porque teu nome
   e a minha boca não tem ?              não me sai do coração.

n.59                                                       n.60                     
    Ouvindo-a falar da vida              Onde um  berço se embalança
dos próprios pais, tive pena              há riso, ventura e luz:               
de ver língua tão comprida              - sobre os berços, doce e mansa,
    numa boca tão pequena              paira a sombra de Jesus.        

n.61                                                       n.62                     
Do berço à tumba há um caminho              Chegaste, afinal ! Chegaste
           que todos têm de transpor:              no instante mais preciso;   
     de passo a passo - um espinho,              vens trazer a quem mataste
       de légua em légua - uma flor.              as rosas de um teu sorriso...

n.63                                                       n.64                     
    Noite de núpcias. O Gama              A mãe que aperta no seio
  encontra a esposa envolvida              um filho de seu amor,       
num lindo roupão e exclama :              tudo enfrenta sem receio    
— Posso, enfim, ver-te vestida!              a calúnia, a injúria e a dor.

n.65                                                      n.66                     
  Minha vida é uma jangada              Tenho um neto e essa ventura
num mar revolto de escolhos,              veio florir os meus dias,            
                baloiçando sossegada                que um neto é um sol que fulgura
    à doce luz dos teus olhos.              num céu de nuvens sombrias.

n.67                                                       n.68                     
Árvore és santa: os teus ramos              Entre o berço e a sepultura
    baloiçam ninhos de amor ;              um relâmpago fugaz,         
    és abrigo, e em ti achamos              mas que século perdura     
   sombra, fruto, aroma e flor.              pelo que nele se faz !           

n.69                                                       n.70                     
A mãe que a um filho acalenta              Quem maldiz a vida, prova
     - tal o seu amor profundo -              não conhecer que ela é vã:
tem a impressão que sustenta              - no espaço do berço à cova
em seus braços todo um mundo.              há ontem, hoje, amanhã.       

n.71                                                       n.72                     
            Coração de coração              A caridade... Consola          
quando quer bem, faz assim:              ao vermos que ela é perfeita,
- põe nas arestas de um não              não por ser grande a esmola,
toda a pelúcia de um sim...              mas no modo por que é feita.

n.73                                                       n.74                     
       Quem ama, há de conhecer               O noivo, da noiva outrora
            a triste escala do amor:              via o rosto e nada mais ;
           - Desejo, ilusão, prazer,               se o rosto não vê agora,
               cansaço, fastio e dor.              todo o resto vê demais...

n.75                                                       n.76                     
Quem em vossos risos mais brilho              Assim como brotam flores
             nas alvoradas não vemos;              do triste, empedrado chão,
          nos olhos ternos de um filho               em rima brotam-me as dores
     é que nós, Pais, nos revemos.              que trago no coração.       

n.77                                                       n.78                     
              Da tua voz a frescura              Para ser feliz, um louco
       feita de encanto e de calor              costuma me aconselhar:
lembram um veio de água pura              - deverás desejar pouco    
                   sob roseiras em flor.              e quase nada esperar...      

n.79                                                       n.80                     
Para um pai um bem se encerra              Vi-a apenas uma vez;
     num berço - como um troféu,              uma só; não mais a vi,
                    as alegrias da Terra               e tal impressão me fez,
                 e as esperanças do Céu.                que nunca mais a esqueci

n.81                                                       n.82                     
   Há no livro uma luz calma              Na minha infância, dezembro,
       que torna o mundo maior:              aos outros meses igual                 
- quem vê pelos olhos da alma,              passava triste... e eu me lembro  
       vê mais longe e vê melhor.              de que não tive Natal....                

n.83                                                       n.84                    
                                                                      (À Maria Teresinha)
          - Toda amizade - é fingida,              Nestes dois nomes se encerra             
todo mal -  recompensado,              um rutilante troféu:                 
toda injustiça - aplaudida              _ Se Maria é a flor da Terra,
e todo amor - enganado...              Teresinha é a flor do céu.        

n.85                                                       n.86                    
Nosso amor, que ardia em brasa              Filha - o sorriso que encanta,         
         foi morrendo de mansinho,              noiva - é a flor que perfuma,        
     e entre a minha e a tua casa              esposa - a graça de pluma,         
      mal se descobre o caminho...              e mãe - a graça da santa.              

n.87                                                       n.88                     
Maio, outrora tão ridente,              Quantas vezes tenho ouvido:
   como vive triste agora!              - como ele ri de prazer!         
Que saudades tem a gente              Quando esse riso é um gemido
daqueles máios de outrora!...              que aos lábios me vem morrer...   

n.89                                                       n.90                     
Fogem-te da alma os pesares,              Teus olhos, lagos risonhos,           
a treva aos teus olhos brilha,              de escuras margens em flor,      
        toda vez que tu beijares              ah! se eu pudesse os transpor
     esse amor, que é tua filha.              no bergantim dos teu sonhos!....

n.91                                                       n.92                     
Correm-te os dias serenos                Quando a mulher quer, eu acho
    e um ano vem e te traz:              que nem Deus a desanima:      
  uma esperança de menos,              - É água de morro abaixo,          
    um desengano de mais.              ou fogo de morro acima.            

n.93                                                       n.94                     
       Um bacharel, meu vizinho,              Risália, naquelas flores                    
          quer saber por que razão              que te dei à despedida,                      
  eu faço um verso "assinzinho"             entre lágrimas e dores                       
              e o denomino... versão...            eu pus toda a minha vida.                    

n.95                                                       n.96                     
   O maior dos meus desejos              Só duas cores havia
              é ver-te, vendo com gosto              de rosas que aqui registro:
   eu entupir com meus beijos              a cor dos pés de Maria
              as covinhas do teu rosto...              e a cor das chagas de Cristo.

n.97                                                       n.98                     
     (De Villaespesa)               (De Villaespesa)     
          Se eu fosse uma flor, querida,               Se eu fosse uma fonte, nada            
         queria, cheia de anelos,              me privaria do gosto              
     morrer ditosa e esquecida              de ver-te em mim reclinada,
       na noite dos teus cabelos...              para em mim veres teu rosto...

       n.99                                         n.100                                      
        Raio de sol ser desejo              Árvore seca, nem flores,                      
        para um dia (oh! que ventura!)        nem sombra e frutos dou mais:                    
    depor-se na fronte um beijo              mataram-me a seiva as dores                   
            e vos ver ainda mais pura               contínuas dos vendavais.                      
                       (De Villaespesa)                     (De Villaespesa)                         

in
 Coleção “Trovadores Brasileiros”
Organização de Luiz Otávio e
J.G. de Araujo Jorge
Editora Vecchi – 1959